11 abril 2019

O perigo da história única



A meu ver, como dizia Chimamanda Adichie, escritora nigeriana, “o que isso demonstra é como nós somos impressionáveis e vulneráveis face a uma história, principalmente quando somos crianças”.
Mas a história que se segue aconteceu em terras do fim do mundo. E marcou psicologicamente a criança que a presenciou. Hoje, é um adulto introvertido, tímido e em que tudo o atormenta e amedronta.
Aconteceu há quase meio século, numa povoação comercial, em terras do fim do mundo, para lá do Munhango.  E porque as coisas mudaram e os protagonistas já desapareceram, o acontecimento merece ser contado.

Vão já saber porquê!

Chovia torrencialmente. Anoitecia. No horizonte viam-se os clarões dos relâmpagos e ouviam-se com estrondo os trovões. Viajava com o meu pai numa camioneta velha (Chevrolet), sem travões, fraca de iluminação e com um guarda-lamas a roçar o pneu dianteiro direito, resultado de um pequeno choque com uma árvore. Quase não se descortinava a estrada, estreita e abafada pelo capim, esburacada e enlameada, mas a habilidade e a coragem do condutor venciam todos os obstáculos e evitou que ficássemos atolados. E de repente parámos. Tínhamos chegado, sem saber como, à povoação comercial de Sacahundo, no Munhango, quando o nosso destino era a povoação de Saluimba. Fora a falta de visibilidade que nos levara por outra picada. No cruzamento, a poucos quilómetros dali, devido à escuridão e à chuva tomámos a picada errada.   E parámos logo em frente à loja do avantajado Francisco Lobo, conhecido na região por “Chindicuto”, comerciante abastado e temido pelos concorrentes e vizinhos. Era um homem alto, corpo de lutador, cabeça quadrada, suportada por um pescoço grosso e curto, maus fígados, olhos penetrantes, sinistro.
Íamos ao Saluimba para carregar milho, massambala, cera e couros, mas fomos parar ao Sacahundo forçados pelo temporal. O meu pai tinha boas relações com o “Chindincuto”, embora estivesse avisado sobre a sua falta de escrúpulos e de carácter. O homem deu-nos guarida e repasto.  Jantámos. D. Josefa ofereceu-nos o habitual no “mato”: caldo verde e churrasco a picar de jindungo, acompanhado de pirão.  Logo após o café, o meu pai pediu ao Chindincuto que me deixasse dormir e descansasse ali, em sua casa,, enquanto se deslocava ao Saluimba, evitando, desse modo, que eu, jovem de seis anos, sofresse o pesadelo de mais uma viagem aos solavancos e cheia de riscos. Deixou-me   no quarto indicado. A cama era quentinha. Enrosquei-me e adormeci profundamente.


Residência de Francisco Lobo
A residência era acolhedora. Dispunha de água canalizada e de eletricidade. O tio do Francisco Lobo aproveitara uma queda de água que corria abundantemente atrás da sua casa para montar uma rudimentar turbina que puxava um gerador eléctrico e, também,  para canalizar a água que era límpida e pura.
Acordei eram já dez horas. O sol ia alto e a temperatura amena. Estava um dia lindo em comparação com o anterior. O meu pai tinha ido para o Saluimba. E eu, depois de ter matabichado, fui para loja já cheia de fregueses.
Antes de descrever o principal acontecimento dessa viagem, devo contextualizar sobre o percurso deste homem e as características e relevância daquilo que representa: Ouvi, uma vez, o meu pai a contar a um amigo quem era o Francisco Lobo. Chegou a Angola ainda jovem com 18 anos, vindo da Beira Alta, chamado por um tio, Joaquim Lobo, figura sibilina que, devido à avançada idade e à doença, precisava de um empregado na loja. Francisco aprendeu todas as manhas do tio e, como era esperto, refinou-as. Passou a ser, após a sua morte, um refinado ladrão, violento, sem escrúpulos e sem moral.
Joaquim enriquecera através da extorsão, da violência e do roubo dos clientes: os negros! Era o habitual: roubava no peso dos produtos comprados (milho, feijão, massambala, cera, gado, etc.) e nos produtos vendidos (panos, roupa, óleo de palma, petróleo, caxipembe, etc.). E nos fiados era bárbaro: ai daquele que caísse nas suas garras! Pagava a triplicar ou ia pagando toda a vida o produto fiado. Utilizava com frequência o chicote para vergastar quem o desafiasse.
E apesar de tudo isso, a loja, nesse longínquo dia, estava a abarrotar de clientes em vozearia infernal, uns por excesso de vinho ou de caxipembe, outros reclamando do peso roubado ou dos produtos adquiridos. Entre os clientes estava o conhecido e respeitado feiticeiro Nandula, da senzala de Caxiqueque. Chindincuto não o suportava. Achava-o altivo e arrogante. No entanto, o povo da sua senzala sentia-se por ele protegido, facto que deixava frustrado o comerciante. E ainda por cima arrastava consigo os fregueses quando mudava de loja. Toda a gente o reverenciava. Os mais velhos ofereciam-lhe vinho ou caxipembe, o que exacerbava a raiva e o ódio que lhe dedicava.

Estabelecimento comercial e armazéns de Francisco Lobo

Chindincuto já tinha congeminado um plano para eliminar essa superioridade do feiticeiro. E resolveu pô-lo em prática naquele momento, tal a raiva e ódio que sentia. Foi ao quarto buscar a sua caçadeira e mais 4 cartuchos, entrou na loja e gritou bem alto para o feiticeiro: vamos lá saber, agora, quem tem mais força e poder!
Fez-se um silêncio de morte. Francisco Lobo carregou a caçadeira com dois cartuchos, entregou-a ao feiticeiro e disse-lhe para a disparar contra o seu peito, o que prontamente foi rejeitado. Era o que faltava dar um tiro num “branco”, caramba,  reagiu o feiticeiro. Mas o comerciante insistiu veementemente, pois queria demonstrar àquele povo que era ainda mais poderoso do que Nandula, o feiticeiro.
Aquela atitude marcou-me profundamente. Fico arrepiado quando me vem à memória. Fugi a esconder-me atrás de um barril de vinho, receando o resultado daquele desafio. Choramingava silenciosamente e tremia como varas verdes.
Nandula, que já tinha emborcado uns copos, eufórico, sentiu que estava em jogo o seu prestígio e, alucinado, disparou a espingarda. Um trovão dentro da loja: pum, pum! E com estupefacção e alívio viu que o “branco” estava vivo e não apresentava ferimentos ou, sequer, sangue que lhe encharcasse a roupa; pelo contrário: Chindincuto batia no peito com as mãos, vociferando que era mais forte que o diabo. Estás a ver como sou indestrutível e tenho poderes mágicos superiores aos teus, gritou-lhe Francisco Lobo, que lhe tomou das mãos e carregou a caçadeira com os outros dois cartuchos. Vamos fazer a experiência ao contrário: agora disparo eu e tu com todo o teu feitiço és o alvo. Nandula, incrédulo, mas bêbado, não se importou ou não percebeu o desafio e levantou os braços: atira! Ouviram -se dois disparos e o Nandula caiu morto, a esvair-se em sangue, cara desfeita pelos zagalotes, irreconhecível.
Silêncio absoluto na loja. Depois, aquela mole humana, atemorizada, aos gritos de terror, abandonou desordenamente o local. Ficaram os embriagados, eu e o Chindincuto. Este chamou os serventes e mandou que abrissem um buraco ali próximo, para onde atirou o corpo de Nandula.
Saí detrás do barril de vinho e corri para longe da loja e daquele facínora. Quando o meu pai me recolheu, vindo do Saluimba, eu não falava, tal o cagaço.  Parecia catatónico, num mutismo absoluto que predominou algumas semanas.
Quando saí daquele estado, contei ao meu pai o acontecimento, mas ele riu-se, porque não acreditou. Que era minha imaginação, a construção virtual de uma situação como resultado do medo e terror.
Mas certo é que se contava que o tal Chindincuto tinta preparado 2 cartuchos só com pólvora e os outros 2 cheios de zagalotes.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Publicação em destaque

Calhando ...

  Tenho uma grande paixão pelo Benfica. Desde criança  e assim que soube pronunciar a palavra Benfica que sou deste clube. Ontem, 18 de Agos...