06 março 2019



 Sol lucet omnibus






Estava um dia lindo. No "quimbo " atarefavam-se homens e mulheres a ensacar e a encher quindas de milho e batata para venderem na povoação comercial de Sacahundo. Uns fariam troca dos produtos por panos e cobertores; outros abastecer-se-iam de géneros de primeira necessidade. No quimbo ficaram apenas os velhos, os cães e a criação doméstica. Partiram a pé e em fila, homens carregando sacos aos ombros à frente e mulheres de quindas à cabeça na retaguarda, filhos às costas, seguros em panos amarrados pela cintura. Iam alegres e descontraídos, esperançados num bom negócio. Diziam piadas e tagarelavam para esquecerem o esforço da caminhada. Caminhavam pelo carreiro no meio da floresta que cheirava a capim molhado na noite de cacimbo Próximo da povoação pararam para descansar e aliviar necessidades. Algumas mães amamentavam os filhos recém-nascidos e davam de comer aos que já caminhavam a seu lado. Depois seguiram carregados dos pesados fardos e depressa chegaram às lojas. Optaram pela do Chindicuto, nome pelo qual era conhecido António Cardoso. Homem rude, grosseiro, explorador e gatuno. Tinha um estabelecimento bem fornecido e gozava da fama de praticar os melhores preços. Mas Cardoso não vendia apenas produtos de primeira necessidade. Tal como tantos outros, tinha uma destilaria clandestina, onde fabricava aguardente a partir de açúcar amarelo. Era uma bebida demasiado forte e diabólica. Constava que lhe acrescentava pilhas de lanterna pelo que, em dois tempos, o liquido arrumava qualquer bebedor Quando tinha que desembolsar uma soma elevadas pela compra dos produtos, oferecia uma garrafa ao freguês que em pouco tempo caia que nem um tordo. Os serventes retiravam-no para o quintal para cozer a bebedeira, situação que Chindicuto aproveitava para colocar à volta dele quatro ou cinco garrafões vazios. Quando o freguês acordava ainda ressacado exigia-lhe o pagamento do falso consumo. Embora estranhasse a anormalidade, este não dispunha de argumentos para contrariar o comerciante e acabava por ficar de bolsos vazios.


Josefa, que tinha enviuvado antes de parir o filho, Lumingo, que transportava às costas, puxou-o para o peito e voltou a amamentá-lo. Era insuportável e devastadora a morte do marido. Trouxera apenas uma quinda de milho. Esperava poder comprar com a troca um pano e um lenço, pois os que trazia estavam a desfazer-se. Chegada a sua vez, pôs a quinda na balança e esperou ansiosa que lhe dissessem o valor a receber. Afinal eram apenas uns trocos. Chindicuto alegava que a quinda estava molhada para aumentar o peso, que o queria enganar, e que o milho que continha era menos do que uma arroba. E despejou o produto para o monte. Já não havia regresso. Mas, o que podia fazer? Obrigar o comerciante a devolver-lhe o milho. Tinha que aceitar. Não havia outro remédio. Sentia-se frustrada e desorientada. Desgostosa e psicologicamente abalada, comprou apenas o lenço, deixando o restante a troco de uma garrafa de aguardente que começou a beber para abafar as mágoas.

Ao fim da tarde, juntaram-se todos de novo e partiram de regresso ao quimbo, uns satisfeitos com o negócio, outros lamentando a ganância do comerciante que roubava no peso e no dinheiro. Alguns homens caminhavam aos tombos, embriagados. Também Josefa que não conseguira comprar o que desejava. Levava o bebé às costas com sérios riscos de o magoar num trambolhão. As outras mulheres lá a iam amparando e ajudando na caminhada. De quando em quando dava umas goladas para esquecer o sofrimento. Tentaram falar com ela, mas Josefa não ouvia, estava perdida no álcool com o sofrimento da recente perda e com a prepotência do comerciante. Começaram a ouvir latidos abafados de cães, sinal de proximidade do quimbo. Deixaram Josefa à porta da sua cubata já a noite ia avançada. Entrou no casebre que não tinha qualquer iluminação. Apenas se viam as brasas do fogo que deixara antes de partir, cuja lenha se decompusera em cinza. Era uma cabana pobre, como tantas outras. Além do fogo, permanentemente aceso ao meio, que servia de fogão, candeeiro e aquecedor nas noites frias, tinha uma esteira para se deitar, umas cabaças com água e panelas de barro. O tecto estava negro de fuligem. Era uma miséria. Bêbeda e cansada, caiu em verdadeiro coma alcoólico. A aguardente fizera estragos devastadores.

No quimbo dormia-se profundamente. Bem bebidos e estoirados da viagem, os habitantes caíram nas esteiras. Apenas se ouviam os cães a ladrar e os gritos lancinantes de uma criança insuficientes para acordar alguém. Aos poucos os gritos e os gemidos desapareceram. Voltou tudo a um silêncio sepulcral. Acordaram mais tarde do que o habitual. Nas cubatas reavivava-se o fogo para preparação da primeira refeição. As mulheres com latas velhas e cabaças foram ao rio para acartarem água e arrecadarem lenha. Tagarelavam sobre as compras do dia anterior. Os homens que possuíam bois abriram os currais para o gado apascentar ou para meterem na canga aqueles que haveriam de puxar a charrua. Outros, munidos de machados ou javites, foram derrubar mata para poderem lavrar novas terras. As mulheres estranharam a ausência de Josefa e procuraram saber se já estava recuperada dos exageros da bebida. Na sua cubata não se ouvia senão um ténue gemido. Alarmaram-se. Algo de grave  acontecera. Bateram à porta e como não obtivessem resposta resolveram entrar para saber o que estava a acontecer. Ficaram estarrecidas e pregadas ao chão com a cena que se lhes deparou. Josefa ao cair desamparada à noite, completamente desequilibrada pela bebida, nem se deu conta de o bebé que trazia ao colo ficara com o pé direito nas brasas. O fogo cozeu-o. O miúdo gritara a plenos pulmões, mas nem a mãe nem os vizinhos ouviram aqueles gritos lancinantes que foram esmorecendo longo da madrugada, acabando em chorados gemidos.

Não havia hospital por perto. Apenas a senhora Kirstein, viúva,  uma alemã que tinha ali próximo uma pequena fazenda de café, lhes valia quando precisavam. Era uma mulher corajosa, solidária, que tinha tomado posse da roça e da casa construída pelo do marido, morto na grande guerra na frente russa. Vivia com dificuldades. E era a troco de trabalho que tratava homens, mulheres e crianças. Capinavam-lhe os cafeeiros e plantavam mais pés de café. Dispunha de uma pequena farmácia com pomadas, antibióticos e anti palúdicos. Tratava-os das febres, diarreias e feridas, abnegada e corajosamente. Tinha algumas vacas que lhe davam algum leite e fazia queijos e manteiga. Era um pequeno rendimento. Vivia pobre mas com esperança de um dia, quando começasse a colher café, melhorar a sua situação.
Foi ela que recebeu, esmagada, o martirizado Luminguinho, já sem os ossos do pé, carnes consumidas pelo fogo. Tratou-o com dedicação e coragem e sedou-o para dormir em paz. A mãe arrependida chorava a desgraça do filho. Se sobrevivesse, ficaria irremediavelmente aleijado. As perturbações psicológicas e aquela diabólica aguardente que lhe fulminou o cérebro contribuíram decisivamente para a desgraça. Permaneceu na roça da senhora alemã mais de quatro meses, pagando-lhe os tratamentos com trabalhos caseiros. Limpava-lhe a casa, carregava água e lenha. Voltou à cubata com um filho estropiado, coxo. Josefa nunca mais tocou em qualquer bebida.  E a vida custa …

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