06 maio 2019

Mãos limpas ...


Era muito jovem e já era comerciante. Joaquim Palhinhas, quando tinha 16 anos foi convidado pelo tio, Ricardo Palhinhas, que vivia no bairro de S. João da cidade do Huambo, a emigrar para Angola, ajudando-o a mudar da vida, pobre e sem futuro, que mantinha em A-da-Gorda na Lourinhã. A partir de Lisboa viajara no paquete “Vera Cruz”, após ter recebido a indispensável “carta de chamada” de seu tio, que se responsabilizou (era da praxe) pelo seu alojamento e a sua alimentação.  Desembarcou no Lobito de sacola às costas à moda saloia e com chapéu para se defender do paludismo.

 Cedo aprendeu todas as manhas de comerciante: roubar no peso e nas medidas ! Passado uns anos, abriu no mesmo bairro a sua própria loja, onde vendia fuba, peixe, óleo de palma, petróleo, tecidos, roupas, vinho, “cachilokototo”, etc. produtos de primeira necessidade dos pobres e miseráveis negros.
Tudo corria normalmente até que um dia foi chamado para a tropa. Fez a recruta em 1962 e foi mandado para a frente de combate contra os movimentos de libertação. Baixo e franzino tinha como especialidade as comunicações radiotelefónicas. Um sortudo, pois nunca saía do aquartelamento, salvo quando toda a companhia era mandada para um qualquer combate. Aí, camuflado, transportava às costas o respectivo rádio para ligar entre si o quartel e os pelotões. Tinha distribuída apenas uma pistola, enquanto os restantes membros da companhia dispunham de metralhadoras, bazucas e morteiros.
O comandante da sua secção era um furriel também oriundo do Huambo, por quem tinha admiração. Este fazia-se acompanhar sempre de uma caveira que apresentava um furo no frontal. Trazia-a na mochila como mascote. Dava sorte, dizia!
Guardado está o bocado …
Bem!  Até que um dia …
O comando determinou que aquela companhia fosse destacada para uma batida a uma região do Nordeste de onde eram desferidos, ultimamente, ataques pelas forças de libertação (denominados terroristas). Assim, o coitado do Joaquim Palhinhas teve de sair do quartel com o radio às costas e a com pistola à cintura. De camuflado e capacete, mochila do radiotelefone as costas, antena flexível esticada, ia com espectativa para a frente de combate, sonhando com diversos cenários. Andaram quilómetros e quilómetros, mas não encontraram inimigo
As populações que viviam nas matas abandonavam as aldeias antes das chegadas dos batedores. Houve, no entanto, uma ocasião em que estiveram quase a apanhar um pequeno grupo, que à pressa abandonou as palhotas, pois havia vestígios de cozinhados e pequenos fogos. Deambulavam pela aldeia apenas os animais domésticos: cabras, porcos e galinhas. Uma delas, em presença de um soldado que procurava apanhá-la para uma apetitosa refeição como há muito não disfrutava, escapou-se por entre o capim muito elevado. Contudo, o soldado não desistiu de lhe deitar a mão e perseguiu-a. De repente, uma velha negra, desdentada, seios secos e caídos, mãos na cabeça, aterrorizada por pensar que o soldado a descobrira, levantou-se e pediu que a poupassem, que a não matassem. O militar desistiu logo da galinha e ficou-se pela desgraçada velha, chamando o alferes para tomar conta do caso.
Este tinha de tomar uma decisão: levar a velha, que nem podia andar, até ao quartel, abandoná-la na sua aldeia, ou abatê-la. Rodeado pelo seu pelotão e após discussão das variáveis resolveu abatê-la, porque dava trabalho transportá-la e era uma lição para os terroristas.
Joaquim Palhinhas deu um passo em frente e voluntariou-se para o acto. Coitado! Queria arranjar uma caveira como a do seu furriel! Deu-lhe um tiro e vejam lá: não foi autorizado a ficar  com o troféu; apenas com uma das orelhas.

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