Do
sótão da Presidência de Cavaco Silva emergiu um livro da autoria do seu
ex-assessor para a imprensa, campanhas eleitorais e assuntos afins, que
confirma aquilo que seria de esperar: de um autor menor nunca sairá uma
história maior. A história das frustrações longamente recalcadas de
Fernando Lima — pelo que por aí tem vindo citado e referente às únicas
coisas que justificarão a curiosidade pela pequena história — é apenas
um relato pessoal, parcial e por vezes assumidamente vingativo do seu
autor. Se alguma coisa ilustra, por osmose e pelo exemplo em causa, é a
miséria ética e política de uma Presidência que acabou com um descrédito
e um desprezo geral nunca antes alcançado por aquelas bandas. No sumo e
no sangue não vai além do registo das miudezas da relação entre dois
homens sem dimensão, cada um à sua maneira, cada um na sua função:
Cavaco Silva, como primeiro-ministro e Presidente, e Lima, naquele
triste papel de ex-jornalista que se recicla em cortesão do poder.
Durante longos vinte anos (com excepção dos últimos seis, vividos em
confessado desterro no sótão de Belém), o assessor imaginou-se influente
na tarefa de aconselhar o homem que nunca se enganava, raramente tinha
dúvidas e, presumidamente, não precisava de qualquer conselho. Já que se
decidiu a escrever as suas memórias destes vinte anos perdidos ou mal
gastos, teria sido interessante que o ex-jornalista se tivesse
concentrado na descrição do personagem que serviu, além da máscara, que
nos falasse da formação do seu pensamento político, se é que algum, do
seu processo de tomada de decisões, da sua relação com amigos e
inimigos. Que nos tivesse contado, por exemplo, alguma coisa de novo
sobre aqueles dez anos determinantes no palácio de São Bento, em que
Cavaco Silva dispôs de uma oportunidade histórica e irrepetível de mudar
de cima a baixo o país, a sua forma de pensar, de agir e de crescer, e
preferiu antes gastar as montanhas de dinheiro vindas da Europa a
construir estradas, centros de congressos e rotundas, a aumentar a
dimensão do Estado até ao ponto de insustentabilidade e a financiar o
abandono de todas as actividades produtivas. Como e porquê se seguiu por
esse caminho? Quem foram os conselheiros de Cavaco, então? Que
discussões houve sobre o caminho a seguir e o destino a dar àqueles
preciosos biliões? Que reflexão política foi feita sobre o futuro do
país, se é que alguma?
É
para isso que servem os livros de memórias dos Sir Humphreys que servem
os poderosos. Mas não este: o livro de Fernando Lima não vai além dos
arrufos de comadres, dos estiletes de ocasional veneno distribuídos por
não nomeados (ou, ainda a medo, pelo chefe), da descrição de alguns
lances de baixa e baixíssima política, das mais bacocas banalidades
apresentadas como informações importantíssimas e das paranóias
conspirativas e securitárias em que tanto o autor do livro como o seu
amo do Palácio sempre gostaram de se consumir e de se imaginar alvo.
Tudo convergindo para o único episódio que, bem espremidas as 400
páginas, era, como se adivinhava, o fim principal do autor: contar a sua
versão do triste e célebre caso das “escutas a Belém” que José Sócrates
teria mandado instalar.
Vale
a pena recordar a história, até pelo que ela teve de insólito e de
inimaginável nas relações institucionais entre o Presidente da República
e o primeiro-ministro. No dia 18 de Agosto de 2009, no final do
primeiro governo Sócrates, o jornal “Público” fazia manchete desta
notícia estrondosa: “Presidência suspeita estar a ser vigiada pelo
Governo”. Ao longo do texto, todo feito de insinuações e suspeitas de
fonte não nomeada, vendia-se a ideia de que “Belém” tinha fortes
indícios de que estaria a ser escutada, vigiada, espiada por São Bento,
e, nomeadamente, através de um assessor de Sócrates que, entre outras
ocasiões, se teria aproximado demasiadamente de pessoal do Presidente,
durante uma visita à Madeira, com o fim evidente de escutar o que
diziam. A “notícia” só não morreu de imediato de um ridículo atroz
porque havia ali um dado que, esse sim, era evidente e grave: com
fundamento ou sem ele, Belém desconfiava do Governo, o PR desconfiava do
PM, e queria que se soubesse. E se Sócrates tratou logo de desmentir a
parte que lhe dizia respeito, Cavaco manteve-se num sibilino silêncio, a
pretexto de não interferir com o ambiente político, numa altura em que
se avançava para eleições legislativas. Obviamente que o silêncio foi
lido como confirmação das suspeitas de Belém, e obviamente que
interferiu com a campanha, permitindo ao PSD afixar cartazes onde
anunciava que a liberdade estava em perigo. Não foi uma jogada de
mestre, foi uma jogada típica de Cavaco Silva: nem que sim nem que não,
atira a pedra e esconde a mão.
O
assessor imaginou-se influente, na tarefa de aconselhar o homem que
nunca se enganava, raramente tinha dúvidas e, presumidamente, não
precisava qualquer conselho
A
18 de Setembro, o “Diário de Notícias” divulga a verdadeira bomba: toda
a história tinha sido congeminada entre Belém, através de Fernando
Lima, e a direcção do “Público”, chegando-se ao ponto de orquestrar a
forma e o conteúdo da notícia inicial, conforme resultava claro da
correspondência electrónica entre dois jornalistas do “Público”,
divulgada pelo “DN”. Jamais, que me lembre, assisti a tamanha
manipulação da imprensa, a tamanha promiscuidade entre o poder político e
o jornalismo. (Mas, para que a vergonha fosse ainda maior, a entidade
que julgou a actuação jornalística absolveu o “Público” e condenou o
“DN” por divulgação de “fonte” alheia!). Com isto sabido e passadas as
eleições, Cavaco Silva decide, enfim, prestar esclarecimentos ao país.
Fê-lo numa comunicação televisiva que ficará para a história da
hipocrisia e da cobardia política. Sobre o assunto em si mesmo, sobre o
fundamento das tais suspeitas ou ausência dele, Sª Exª disse nada. Em
vez disso, informou o país de que, tendo nesse mesmo dia chamado uns
“técnicos”, estes lhe haviam revelado que até o seu computador podia ser
infiltrado. E, já agora, um tal de Fernando Lima era descartado das
suas funções, mas mantendo-se ao serviço — no tal sótão, a ler jornais
até ao fim dos tempos. Típico de Cavaco: não se atreve a despedir o
homem com medo das represálias, mas também não se atreve a não fazer
nada, com medo da reacção política. Não se atreve a confirmar as
suspeitas levantadas pela sua Casa Civil, mas também não se digna a
negá-las.
O desterrado conta agora, seis anos volvidos, que Cavaco levou o seu descarte ainda mais longe, ao ponto de fingir que não viu o seu antigo assessor quando com ele se cruzou em público. E, tendo-o reconduzido nas funções de sótão para o seu segundo mandato, nunca mais lhe quis pôr a vista em cima.
Magoado,
“chocado”, Lima seguiu em silêncio o seu “caminho das pedras”, cinco
anos fechado no seu sótão a ruminar esta pífia vingança. 400 e tal
páginas em que deixa sem resposta as únicas perguntas que interessavam:
quem, afinal, congeminou a tal conspiração das escutas — foi ele, foi
Cavaco, foram ambos ou foi outrem? E Cavaco sabia, consentiu, aprovou,
acompanhou? E, enfim, a pergunta que qualquer ser decente se fará ao ler
esta longa recriminação: por que razão alguém, assim distratado e
publicamente humilhado por quem serviu tantos anos, se mantém em
funções, em lugar de se demitir imediatamente?
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
Sem comentários:
Enviar um comentário