O juiz Carlos Alexandre é um homem muito trabalhador, muito austero e
muito sério. Sabe a diferença entre o bem e o mal. Tem um salário
baixo. Trabalha tanto, para ver se ganha mais um bocadinho, que não tem
tempo para se valorizar. Não se casou com uma alentejana rica, ganha 75
euros ao fim de semana - menos do que um tradutor, informou-nos - e tem
de pagar dívidas. É um homem muito, muito preocupado com dinheiro. Acha
que é escutado ilegalmente, mas não se preocupa com isso, já que não tem
nada a esconder. Podia ser um homem perigoso, dada a função que ocupa e
os segredos que conhece, mas não é, já que ele atua sempre pelo bem.
Quase não tem amigos, e um dos poucos tem pena dele.
Há boas
razões para um juiz ser discreto. Quase todas se prendem com a
necessidade de os cidadãos não criarem uma imagem formada a partir das
opiniões, dos gostos ou até de coisas mais pequenas dos homens e
mulheres que têm como função aplicar a lei. O juiz tem de ser o primeiro
a contribuir para que não surjam preconceitos acerca de si próprio.
Que, justa ou injustamente, alguém pense que julga assim ou assado por
não gostar disto ou daquilo, por ter esta ou aquela propensão, por ter
este ou aquele feitio, por parecer sofrer de ressabiamento contra este
ou aquele grupo social. É fundamental que a comunidade esteja
absolutamente segura de que o juiz ou a juíza decide exclusivamente em
função da lei.
O juiz Carlos Alexandre decidiu que queria que as
pessoas tivessem uma determinada opinião sobre ele. Quis que nas
vésperas de uma das mais importantes decisões da justiça portuguesa as
pessoas o vissem de uma determinada forma. Optou por uma fórmula já
muito testada e que em política tem dado excelentes resultados: o homem
trabalhador e austero, sem os luxos dos grandes deste mundo; o homem com
poucos amigos que não tem cumplicidades; o homem que veio de baixo; o
homem que não tem nada a esconder; o homem que não tem uma função, mas
sim uma missão. Ele é o homem comum que luta contra os ricos e
poderosos. Qualquer semelhança com os políticos que construíram a sua
carreira alardeando constantemente todos estes predicados, e com grande
sucesso, não é coincidência.
Sendo ele um homem que tem um enorme
poder e que o exerce para o bem - ele diz que seria alguém perigoso se
trabalhasse para o mal -, a lei passa a ser um detalhe. Ou seja, estando
nós perante um homem que encarna o bem, conhecendo ele o que está certo
ou errado, tendo ele todas as qualidades e o modo de vida que definem
um homem com o que parecem ser os atributos que uma maioria gosta, isso
torna-se mais importante para tomar uma decisão do que a própria lei. E,
claro, estando Carlos Alexandre à frente de processos em que do outro
lado estão os tais ricos e poderosos, nada como mostrar que é um de nós,
nada como mostrar que não é um desses esbanjadores sofisticados e
esquemáticos. Ele está a lutar por nós e se por acaso cometer alguns
erros, se as provas não forem suficientes, se a lei não for
escrupulosamente cumprida, nós temos a garantia de que ele sabe, ele
conhece bem os bastidores dos negócios e de certas decisões. O que conta
é que ele é um homem sério e que se pautará pelo bem.
O perigo para a comunidade, a perversidade de tudo isto não carece de grandes explicações.
Só mesmo um homem que se julga a encarnação do bem, da justiça e que pensa estar acima da lei se pode permitir dizer e repetir, sem que ninguém lhe tivesse perguntado nada, que "não tem dinheiro em nome de amigos". É que é, como se sabe, a primeira coisa que ocorre dizer quando se tenta provar que não se tem fortuna.
Só mesmo um homem que se julga a encarnação do bem, da justiça e que pensa estar acima da lei se pode permitir dizer e repetir, sem que ninguém lhe tivesse perguntado nada, que "não tem dinheiro em nome de amigos". É que é, como se sabe, a primeira coisa que ocorre dizer quando se tenta provar que não se tem fortuna.
Poupemo-nos a explicações
que seriam insultuosas para a inteligência do comum dos mortais: Carlos
Alexandre insinuou que o arguido José Sócrates tem dinheiro em nome de
amigos. Ou seja, Carlos Alexandre falou claramente de um processo em que
está envolvido e insinuou que um arguido praticou uma certa conduta.
Mais, Carlos Alexandre dá como certa a tese principal da acusação, a de
que o dinheiro em nome de Santos Silva é de Sócrates.
Numa justiça
que quisesse mesma ser justa, o processo Marquês era-lhe imediatamente
retirado. Mais, se as corporações judiciais estivessem mesmo
interessadas na boa saúde da justiça, seriam elas as primeiras a pôr em
causa as condutas de Carlos Alexandre. Pactuando com tudo isto, é todo o
edifício judicial que se descredibiliza.
São muito bonitos os
apelos a pactos na justiça, mas enquanto se lidar com espetáculos como o
que foi dado pelo juiz Carlos Alexandre, como se fosse normal, tudo
ficará na mesma, para gáudio dos cultores da justiça na praça pública e
para os justiceiros de tabloide.
A entrevista de Carlos Alexandre
lembra-nos que é sempre possível cair mais fundo. Era capaz de apostar
que grandes tormentas para aí vêm, das que põem em causa alicerces
básicos.
Existirão outras interpretações sobre as verdadeiras razões de Carlos Alexandre, mas o que ficou claro é que se é este o cavalheiro que tem entre mãos os mais importantes casos da justiça em Portugal, a justiça colapsou. E nós continuamos a refeiçoar tudo isto, impávidos e serenos.
Existirão outras interpretações sobre as verdadeiras razões de Carlos Alexandre, mas o que ficou claro é que se é este o cavalheiro que tem entre mãos os mais importantes casos da justiça em Portugal, a justiça colapsou. E nós continuamos a refeiçoar tudo isto, impávidos e serenos.
Por Pedro Marques Lopes, in "Diário de Notícias"
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