O perigo da história única
A meu ver, como dizia
Chimamanda Adichie, escritora nigeriana, “o que isso demonstra é como nós somos
impressionáveis e vulneráveis face a uma história, principalmente quando somos
crianças”.
Mas a história que se
segue aconteceu em terras do fim do mundo. E marcou psicologicamente a criança
que a presenciou. Hoje, é um adulto introvertido, tímido e em que tudo o
atormenta e amedronta.
Aconteceu há quase meio
século, numa povoação comercial, em terras do fim do mundo, para lá do
Munhango. E porque as coisas mudaram e
os protagonistas já desapareceram, o acontecimento merece ser contado.
Vão já saber porquê!
Chovia torrencialmente.
Anoitecia. No horizonte viam-se os clarões dos relâmpagos e ouviam-se com
estrondo os trovões. Viajava com o meu pai numa camioneta velha (Chevrolet),
sem travões, fraca de iluminação e com um guarda-lamas a roçar o pneu dianteiro
direito, resultado de um pequeno choque com uma árvore. Quase não se
descortinava a estrada, estreita e abafada pelo capim, esburacada e enlameada,
mas a habilidade e a coragem do condutor venciam todos os obstáculos e evitou
que ficássemos atolados. E de repente parámos. Tínhamos chegado, sem saber
como, à povoação comercial de Sacahundo, no Munhango, quando o nosso destino
era a povoação de Saluimba. Fora a falta de visibilidade que nos levara por
outra picada. No cruzamento, a poucos quilómetros dali, devido à escuridão e à
chuva tomámos a picada errada. E
parámos logo em frente à loja do avantajado Francisco Lobo, conhecido na região
por “Chindicuto”, comerciante abastado e temido pelos concorrentes e vizinhos.
Era um homem alto, corpo de lutador, cabeça quadrada, suportada por um pescoço
grosso e curto, maus fígados, olhos penetrantes, sinistro.
Íamos ao Saluimba para
carregar milho, massambala, cera e couros, mas fomos parar ao Sacahundo
forçados pelo temporal. O meu pai tinha boas relações com o “Chindincuto”,
embora estivesse avisado sobre a sua falta de escrúpulos e de carácter. O homem
deu-nos guarida e repasto. Jantámos. D.
Josefa ofereceu-nos o habitual no “mato”: caldo verde e churrasco a picar de
jindungo, acompanhado de pirão. Logo
após o café, o meu pai pediu ao Chindincuto que me deixasse dormir e
descansasse ali, em sua casa,, enquanto se deslocava ao Saluimba, evitando, desse
modo, que eu, jovem de seis anos, sofresse o pesadelo de mais uma viagem aos
solavancos e cheia de riscos. Deixou-me
no quarto indicado. A cama era quentinha. Enrosquei-me e adormeci
profundamente.
Residência de Francisco
Lobo
A residência era
acolhedora. Dispunha de água canalizada e de eletricidade. O tio do Francisco
Lobo aproveitara uma queda de água que corria abundantemente atrás da sua casa
para montar uma rudimentar turbina que puxava um gerador eléctrico e, também, para canalizar a água que era límpida e pura.
Acordei eram já dez
horas. O sol ia alto e a temperatura amena. Estava um dia lindo em comparação
com o anterior. O meu pai tinha ido para o Saluimba. E eu, depois de ter
matabichado, fui para loja já cheia de fregueses.
Antes de descrever o
principal acontecimento dessa viagem, devo contextualizar sobre o percurso
deste homem e as características e relevância daquilo que representa: Ouvi, uma
vez, o meu pai contar a um amigo quem era o Francisco Lobo. Chegou a Angola
ainda jovem com 18 anos, vindo da Beira Alta, chamado por um tio, Joaquim Lobo,
figura sibilina que, devido à avançada idade e à doença, precisava de um
empregado na loja. Francisco aprendeu todas as manhas do tio e, como era esperto,
refinou-as. Passou a ser, após a sua morte, um refinado ladrão, violento, sem
escrúpulos e sem moral.
Joaquim enriquecera
através da extorsão, da violência e do roubo dos clientes: os negros! Era o
habitual: roubava no peso dos produtos comprados (milho, feijão, massambala, cera,
gado, etc.) e nos produtos vendidos (panos, roupa, óleo de palma, petróleo,
caxipembe, etc.). E nos fiados era bárbaro: ai daquele que caísse nas suas
garras! Pagava a triplicar ou ia pagando toda a vida o produto fiado. Utilizava
com frequência o chicote para vergastar quem o desafiasse.
E apesar de tudo isso,
a loja, nesse longínquo dia, estava a abarrotar de clientes em vozearia
infernal, uns por excesso de vinho ou de caxipembe, outros reclamando do peso
roubado ou dos produtos adquiridos. Entre os clientes estava o conhecido e
respeitado feiticeiro Nandula, da senzala de Caxiqueque. Chindincuto não o
suportava. Achava-o altivo e arrogante. No entanto, o povo da sua senzala
sentia-se por ele protegido, facto que deixava frustrado o comerciante. E ainda
por cima arrastava consigo os fregueses quando mudava de loja. Toda a gente o
reverenciava. Os mais velhos ofereciam-lhe vinho ou caxipembe, o que exacerbava
a raiva e o ódio que lhe dedicava.
Estabelecimento
comercial e armazéns de Francisco Lobo
Chindincuto já tinha
congeminado um plano para eliminar essa superioridade do feiticeiro. E resolveu
pô-lo em prática naquele momento, tal a raiva e ódio que sentia. Foi ao quarto
buscar a sua caçadeira e mais 4 cartuchos, entrou na loja e gritou bem alto
para o feiticeiro: vamos lá saber, agora, quem tem mais força e poder!
Fez-se um silêncio de
morte. Francisco Lobo carregou a caçadeira com dois cartuchos, entregou-a ao
feiticeiro e disse-lhe para a disparar contra o seu peito, o que prontamente
foi rejeitado. Era o que faltava dar um tiro num “branco”, caramba, reagiu o
feiticeiro. Mas o comerciante insistiu veementemente, pois queria demonstrar
àquele povo que era ainda mais poderoso do que Nandula, o feiticeiro.
Aquela atitude
marcou-me profundamente. Fico arrepiado quando me vem à memória. Fugi a
esconder-me atrás de um barril de vinho, receando o resultado daquele desafio.
Choramingava silenciosamente e tremia como varas verdes.
Nandula, que já tinha
emborcado uns copos, eufórico, sentiu que estava em jogo o seu prestígio e,
alucinado, disparou a espingarda. Um trovão dentro da loja: pum, pum! E com
estupefacção e alívio viu que o “branco” estava vivo e não apresentava
ferimentos ou, sequer, sangue que lhe encharcasse a roupa; pelo contrário:
Chindincuto batia no peito com as mãos, vociferando que era mais forte que o
diabo. Estás a ver como sou indestrutível e tenho poderes mágicos superiores
aos teus, gritou-lhe Francisco Lobo, que lhe tomou das mãos e carregou a
caçadeira com os outros dois cartuchos. Vamos fazer a experiência ao contrário:
agora disparo eu e tu com todo o teu feitiço és o alvo. Nandula, incrédulo, mas
bêbado, não se importou ou não percebeu o desafio e levantou os braços: atira!
Ouviram -se dois disparos e o Nandula caiu morto, a esvair-se em sangue, cara
desfeita pelos zagalotes, irreconhecível.
Silêncio absoluto na
loja. Depois, aquela mole humana, atemorizada, aos gritos de terror, abandonou
desordenamente o local. Ficaram os embriagados, eu e o Chindincuto. Este chamou
os serventes e mandou que abrissem um buraco ali próximo, para onde atirou o
corpo de Nandula.
Saí detrás do barril de
vinho e corri para longe da loja e daquele facínora. Quando o meu pai me recolheu,
vindo do Saluimba, eu não falava, tal o cagaço. Parecia catatónico, num mutismo absoluto que
predominou algumas semanas.
Quando saí daquele
estado, contei ao meu pai o acontecimento, mas ele riu-se, porque não
acreditou. Que era minha imaginação, a construção virtual de uma situação como
resultado do medo e terror.
Mas certo é que se
contava que o tal Chindincuto tinta preparado 2 cartuchos só com pólvora e os
outros 2 cheios de zagalotes.
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