Com a devida vénia, transcrevo o artigo de Ferreira Fernandes, a propósito de
de um artigo de uma historiadora:
Vai por aí grande polémica sobre um texto da historiadora Maria de
Fátima Bonifácio publicada no jornal Público, sábado. O texto
começou por ser sobre quotas para minorias étnicas, mas o essencial dele é ser
racista. Parte da discussão fez-se à volta das quotas ou sobre se um texto
racista pode ser publicado no Público (hesito, como o diretor do jornal, Manuel
Carvalho, quando deu resposta à polémica, no domingo, mas já lá vamos)... Antes
de mais, quero precisar o que é substancial: e isso é o texto de Fátima
Bonifácio. Ele é racista.
Então, falemos do texto da historiadora. Do tronco, osso, substância: o
racismo do texto de Fátima Bonifácio. Quando a palavra má é tão clara, acumular
argumentos contra ela só dilui a conclusão: o texto é racista. Mas porque se
pode julgar que se exagera a partir de um só exemplo - aquele que ilustra como
pensa tão mal a historiadora -, dou outro exemplo, que o precede.
Para criticar possíveis quotas para minorias étnicas, Fátima Bonifácio
admite que as quotas positivas para as mulheres portuguesas lhes abriu o espaço
público. Mas, adianta, as quotas foram positivas para as mulheres porque elas
"partilham, de um modo geral, as mesmas crenças religiosas e os mesmos
valores morais: fazem parte de uma entidade civilizacional milenária que dá
pelo nome de Cristandade." Assim, o que foi bom para as mulheres não o
seria para as minorias étnicas: "Ora isto não se aplica a africanos nem a
ciganos", decreta Fátima Bonifácio.
Confesso, não convivo com ciganos, aliás, nem com ucranianos, por isto ou
aquilo, acasos. Mas, porque tenho uma história pessoal mais próxima com
africanos, posso perguntar: Fátima Bonifácio, quantas centenas de africanos
quer que lhe apresente, alguns familiares, muitos de amizade funda e íntima,
vizinhos e colegas que partilham as tais mesmas crenças religiosas e os mesmos
valores morais que você invoca?
E já que generaliza, para um povo etno-continental (negros, enfim), esses
valores - como diz, tão opostos aos seus - aconselho-a uma ida, de segunda a
domingo, a uma pequena vila a duas horas de Luanda, Angola, África. Numa curva
do rio Quanza, em Muxima, vá à igreja (que não é milenária, mas vai a bom
caminho da metade) e fale com algumas das dezenas de pessoas que lá estarão,
como cada dia estão outras. Não fale só de cristandade (em que sobre mistérios
religiosos encontraria melhores interlocutores que eu, ateu) mas também sobre
valores morais comuns: o papel igual da mulher, o amor pela família, o culto
pela educação dos filhos, o respeito pelo outro... Mas, admito, também
encontrará quem não pense assim.
já agora, se não abanar o seu passaporte luso, nem sublinhar a sua
pronúncia (que, suponho não abre tanto as vogais como aquela gente), repare que
tantos, naturalmente, a vão tomar como compatriota deles. Outros,
provavelmente, não. O que eu quero dizer, com ambos universos opostos, é que
parte desse conjunto desmente a sua abusada afirmação: "Ora isto não se
aplica a africanos..." Ora, digo eu, essa generalização que fez não é
gratuita e sem consequências. Ela pretende, com uma falsidade, retirar um
benefício a parte da nossa sociedade (os africanos), quando, como a Fátima
Bonifácio admite, já se mostrou eficaz e boa para outra (as mulheres).
Enganar-se-iam, no entanto, alguns dos fiéis da igreja na Muxima, aqueles
que veriam Maria de Fátima Bonifácio como igual e com iguais valores morais.
Pelo menos um valor dela, não é para todos igual. Não generalizo, não digo tudo
que ela pensa. Mas digo que é racismo, quando ela escreve, o que passo a citar:
"Os africanos são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios; e
detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou
"nacionalidades" rivais. Há pouco tempo, uma empregada negra do meu
prédio indignou-se: "Senhora, eu não sou preta, sou atlântica,
cabo-verdiana." Passou-se comigo. A cabo-verdiana desprezava as angolanas
porque eram africanas, não atlânticas, e muito mais pretas..." Fim da
citação racista. E sendo isso racista, boa parte dos que a ouvirem, em Muxima,
não são.
Tenho a mesma idade, a mesma nacionalidade e ao que vejo um percurso de
vida completamente diferente de Maria de Fátima Bonifácio. Eu estaria a renegar
tantos, tantos amigos de infância e de adolescência e pela vida fora - o
Gabriel Nionje Seda, o Joaquim Pinto de Andrade, o Zézinho Victor de Carvalho,
o Garcia Neto, o Zé e o João Van Dúnem... - se não me indignasse com as
palavras da historiadora. Nomeio aqueles, todos negros e já desaparecidos, e
poderia fazê-lo com dezenas de outros, que tantas vezes vi proclamarem o seu
não racismo a negros que pensavam o mesmo, em inverso de Fátima Bonifácio,
contra brancos. E na sociedade portuguesa e africanas que conheço, hoje,
aqueles meus irmãos já desaparecidos poderiam desiludir-se com muito que
veriam. Mas, uma coisa é certa, não com os muitos mais e melhores africanos que
acreditam na igualdade racial.
Calhou a Fátima Bonifácio conhecer uma cabo-verdiana no patamar do seu
prédio. Ouviu dela: "Senhora, eu não sou preta, sou atlântica,
cabo-verdiana." Concluiu a historiadora: "A cabo-verdiana desprezava
as angolanas porque eram africanas, não atlânticas, e muito mais
pretas..." Que leva, da frase da cabo-verdiana, a historiadora a concluir
o racismo que lhe atribui? O salto de Fátima Bonifácio é, provavelmente só
falta de mundo - a cabo-verdiana não seria mesmopreta e seguramente seria
atlântica (e ela e eu não estamos a referir-nos ao oceano mas à mistura
cultural). Deste único testemunho factual, mal interpretado, Maria de Fátima
Bonifácio fez um texto racista. Bate certo, o essencial do racismo é a
ignorância.
O racismo do texto é, pois, o essencial que a polémica deveria ter tratado
- raramente uma intelectual portuguesa foi tão boquirrota nessa matéria.
Depois, a discussão derramou-se por outras ramagens. Maria de Fátima Bonifácio,
antes de se espalhar no essencial, foi contra, como já disse, as quotas
positivas para as minorias étnicas - Marta Mucznik, assessora do PSD na
Câmara de Lisboa, deu-lhe uma boa resposta, no Observador. Mas o que mais
aqueceu nas caixas de comentários e nas redes sociais foi o ataque ao jornal Público,
sobretudo depois do texto do diretor Manuel Carvalho, publicado no domingo
"A propósito do texto de Maria de
Fátima Bonifácio."
Sou contra a interdição de se publicar uma opinião e, logo, até de proibir
uma opinião racista. Até as ideias ignorantes têm direito a ser publicadas. A
interdição é como uma pena de morte, um ato definitivo que impede que se ouça,
num dado momento, uma aparentemente opinião estapafúrdia ("a Terra é que
anda à volta do Sol") e, mais tarde, vai-se a ver que não é tão
estapafúrdia assim. Daí, ser erro a interdição geral, como lei da sociedade, de
uma opinião, qualquer que seja.
Outra coisa é um jornal poder escolher as opiniões que publica. Pelo que
interpreto do editorial de Manuel Carvalho, o texto foi publicado no seu jornal
porque o caráter racista do texto foi desvalorizado, porque a autora era
"uma intelectual consagrada" e o tema supunha-se que fosse sobre
quotas positivas das minoras étnicas. Hoje, eu não publicaria o texto de Fátima
Bonifácio, porque ele era ignorante; amanhã, esperando que não evoluamos para
lá, porque pode vir a ser perigoso - mas sem a polémica, vejo facilmente o DN a
ter feito o mesmo que o Público, no sábado.
Assunto mais importante a ter em conta são as baterias que se viraram
contra o Público. Sobre essa injustiça, cabe ao cidadão agradecido que
sou, lembrar que nos 30 anos para que vai aquele jornal ele fez mais por uma
certa modernidade de Portugal - incluindo nela exatamente a luta contra o
racismo - do que qualquer instituição portuguesa: universidades, políticas
governamentais e qualquer outro jornal.
Foi com explicadores públicos da generosidade como Adelino Gomes,
estagiários como José Eduardo Agualusa a contar-nos Lisboa negra, estrangeiros
tão nossos como o "não preto, atlântico e cabo-verdiano" Germano
Almeida a contar-nos o outro, que se formaram gerações que se podem permitir
ter alguns assanhados a cuspir, do Twitter e do Facebook, nesse grande jornal.
Pois sim, mas lembrem-se que sem o Público, vocês seriam hoje uns
saloios.
Sem comentários:
Enviar um comentário