06 novembro 2017

Quero-o, ordeno-o, que a minha vontade se sobreponha à razão


No Tomolo, povoação comercial, havia apenas um comerciante. Situada junto ao rio Catumbela, tinha próximo o Bocóio, na margem direita, rico em plantações de rícino, de alto rendimento e elevada cotação. Entre outras, a família Mutete não dispunha de outro rendimento senão aquele produto, cuja colheita anual atingia vinte sacas, cerca de oitocentos quilos. Também cultivavam massango e milho, base da sua alimentação. Viviam desafogados dentro dos parâmetros da tribo. Para os bocoios, porém, o símbolo da riqueza era o gado. Possuir vacas e bois era uma ambição pessoal e de poder. Quem fosse possuidor de uma manada, podia casar com várias mulheres e obter ainda mais prestígio. O soba Jaca, à sua conta, tinha doze que viviam em casas dispersas em redor da principal. Nem sabia quantos bois tinha tão grande era a manada. As mulheres e os pastores é que davam conta dos nascimentos e dos abates. Era muito rico, respeitado e exemplo para as famílias mais novas e com ambição.
Mutete tinha apenas uma mulher, Chinola, e um filho. Trabalhador incansável, persistente e ambicioso tivera uma boa colheita. Juntara dinheiro e resolveu ir à procura de gado. Foi ao Tomolo, onde constava haver nemas de qualidade. Partiu acompanhado da mulher e do filho, que ela transportava às costas. Atravessaram o rio numa canoa e chegaram de manhã cedo à povoação. À porta da loja havia muitos fregueses, uns para comprarem pintados e panos, outros para comprarem gado. Falou com o comerciante, Marques da Silva, que o levou ao curral para escolher duas nemas. Apreciou a manada e depois de regatear o preço pagou dois contos pelos animais escolhidos.
Como tinha família no Cubal que há muito não via, resolveu andar mais uns quilómetros, até lá, para visitá-la. As nemas ficariam naquela povoação e no mesmo curral com o consentimento do vendedor, evitando cansá-las e a trabalheira da condução. Andou todo o dia para chegar à zanzala do tio que os recebeu com alegria, dando-lhes guarida e alimentação.
No dia seguinte foram todos à povoação, tanto mais que estava interessado nuns pintados e em missangas para a mulher. Beberam uns copos e já animados regressaram a casa, levando uns garrafões de vinho para continuarem a festejar o reencontro. Houve excessos e ficaram o dia seguinte em casa a curarem a ressaca
Voltaram ao Cubal, agora para comprarem fio de latão destinado a adereços para as pernas da mulher e do filhote. Comprou também um colete para si e uma sombrinha, peça prestigiante e que simbolizava maturidade.
Ficou por ali uma semana, comendo e bebendo, e dando conta da sua terra e notícias dos parentes que deixara. Ainda teve tempo para fazer do fio de latão argolas para as pernas da mulher e do filho. Ela já tinha uns guizos que, à medida dos passos, faziam o ruído característico, mas agora ficava mais bonita com aquele enfeite. Depois partiu de regresso ao Tomolo e à casa no Bocóio.

Chegou ao anoitecer à povoação e pernoitou junto à fogueira do guarda da loja, que repartiu o pirão e o peixe seco da sua refeição e lhes emprestou uma esteira para dormirem. Ouviram-no tocar quissanje durante parte da noite para afugentar o sono e não ser apanhado em falso pelo patrão.
De manhã cedo tomaram uma caneca de café e aguardaram a abertura do estabelecimento. Quando chegou a ocasião, Mutete pediu ao Marques da Silva as suas nemas para se fazer ao caminho.
    - Não! Não pode ser, pois temos de fazer contas.
    - Como assim? Então eu já tas paguei!
    - Não! Deves-me nove nemas.
    - Mas eu só comprei duas que paguei, como é que agora me cobras nove?
    - Aí é que está o busílis! Enquanto foste ao Cubal, as tuas nemas pegaram kahonha às minhas e elas morreram. Foram nove e tens que pagá-las.
    - Mas as minhas nemas viviam juntas das tuas e eu nem sequer toquei nelas e consentiste em guardá-las. Além do mais, só agora é que eu venho tomar posse delas.
    - Não. Tens que pagar o meu prejuízo. As tuas sobreviveram. Por isso foram elas que transmitiram a doença às minhas.
    - Uha! Isso não é justo e além de mais não tenho dinheiro.
    - Então ficam aqui as tuas nemas até me pagares as outras.
    - Não, senhor! Eu vou pegar nelas e levá-las já para a minha aldeia
    - Pagas e não refiles, seu negro de merda!
    - Aiuê! Mas paguei minhas vacas
    - Se não pagas a bem, vais pagá-las a mal.

Mutete estremeceu, sentindo ódio e raiva naquelas palavras do comerciante. Mas a sua razão e o seu orgulho deram-lhe coragem para ir ao curral levantar as nemas que eram suas. Enfurecido, Marques da Silva atacou-o às bofetadas, socos e pontapés, ferindo-lhe o sobrolho direito e cortando-lhe o lábio inferior.

    - Filha da puta de negro! Eu rebento-te. Vais ver se pagas ou não?

O corpo torturado de Mutete caiu em cima da bosta do curral ao lado das suas vacas. O sangue saía-lhe da boca e do nariz, sujando o colete novo. Logo que o agressor se afastou e que seus passos se deixaram de ouvir, ergueu-se estonteado e procurou a mulher que assistira aterrorizada ao massacre. Afastaram-se da loja e foram para casa de um amigo, deitando-se numa esteira. Ali passou a noite a sofrer e a meditar. No dia seguinte foi apresentar queixa com todos os vestígios da agressão.
E a vida custa…

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